As mulheres de InuYasha e a mendigação do amor
*Sim, eu usei a versão brasileira dos nomes dos personagens. Sim, este texto contém spoilers.
Finalmente terminei de assistir InuYasha. Conheci esse anime na adolescência, quando minha dieta era baseada em Meg Cabot e biscoito com recheio de chocolate. Lembro-me de ficar acordada até quase duas horas da manhã para assistir esse e outros desenhos no Cartoon. Então, certa noite, sem aviso prévio, InuYasha desapareceu. Nem estávamos tão perto assim do arco final, e o Narak continuava pleno com suas artimanhas noveleiras e o cabelo impecável, a despeito da ausência de xampu.
Só consegui retomar o anime depois da pandemia. Retomar, não. Tive de voltar do início, pois seria demais exigir da minha memória que entregasse um resumo decente dos arcos assistidos aos quinze, dezesseis anos. Com a ajuda da Netflix e da Amazon Prime, tive acesso a todos os episódios, além dos quatro filmes. Quanto tempo levei para finalizar? Mais de dois anos. É. Eu sei. Em minha defesa: InuYasha é bem menos instigante do que eu me lembrava.
As piadas são bobas e repetitivas. O Narak é um vilão chato que só faz fugir. O Jaken não recebe tempo suficiente de tela. (Conta pra mim se você também começou a gostar do Jaken na idade adulta.) No fim das contas, terminei o anime por pura teimosia de saber como — pelos brinquedos do Shippou — os mocinhos iam derrotar o Narak depois de este completar a Joia de Quatro Almas. Porque era óbvio que isso ia acontecer, né? O vilão precisa alcançar seu poder máximo, para gerar uma batalha épica ao estilo Harry Potter e as Relíquias da Morte. Exceto pelo fato de que, no fundo, eu só queria mesmo era confirmar se o InuYasha e a Agome formariam um casal.
No último episódio, para a surpresa de uma pessoa, eles ficaram juntos. Tudo bem, eu entendo. O recurso da enrolação é muito precioso nas histórias de amor. Todo mundo sabe que A e B estão destinados um ao outro, mas eles só vão aceitar isso um segundo antes da obra despejar o “viveram felizes para sempre”. É bonitinho quando somos crianças e adolescentes. Perde a graça quando somos adultos. A história não termina com o beijo apaixonado; ela começa. Manter um relacionamento é difícil, envolve brigas e exige maturidade. Se não fosse por toda a enrolação obrigatória, poderíamos ter visto o casal se formar em meados do anime e, quem sabe, acompanhar um desenvolvimento mais interessante e maduro. Do jeito como as coisas aconteceram, o InuYasha foi meio babaca com a Agome até se tornar o namorado perfeito e atencioso ao quase perdê-la. Na verdade, nem isso. O último episódio só jogou um time skip na nossa cara e depois emendou direto no “viveram felizes para sempre”. (A propósito, eu ainda não assisti Hanyou no Yashahime, então, para todos os efeitos, a história congelou nesse ponto para mim.)
Mas, sabe, esse nem foi o aspecto que mais me incomodou. InuYasha é destinado ao público adolescente. Eu posso aceitar a enrolação. Contudo, as mulheres desse anime se submetem a situações meio… problemáticas.
Vamos começar pela Sango, mulher inteligente, determinada e habilidosa. Qual é o seu arco dramático? Resgatar o irmão da rede manipuladora do Narak e se apaixonar pelo Mirok, que literalmente cumprimenta todas as mulheres solteiras com um convite para fazer filho. Até quando ele começa a dar sinais de melhora, temos uma regressão logo em seguida, e os sentimentos da Sango são feridos outra vez. Não consigo acreditar na capacidade do Mirok de ser um bom marido. Inclusive, se InuYasha fosse um anime adulto, eu não me surpreenderia se ele saísse por aí traindo a Sango em cada vilarejo. Mas consigo entender a teimosia da Sango em insistir nesse relacionamento. Porque, na vida real, as mulheres são incentivadas a agir dessa forma. Ele errou? Perdoa, amiga. Homem é assim mesmo.
Ah, Ju, você está sendo injusta. O Mirok várias vezes arrisca a vida para salvar a Sango. É a prova de que ele a ama! Sim, isso acontece algumas vezes. Então, no episódio seguinte: você quer ter um filho meu? Para não falar nos momentos de mão boba. Ele chega a fingir que há algo de errado no Buraco do Vento para distrair a Sango e alisar seu corpo. Ridículo! A absoluta falta de bom senso do Mirok é uma piada chata, repetitiva e de mau gosto. O fato de ele às vezes ser romântico não anula essa falha de caráter. A Sango não precisa se submeter a esse ciclo. No entanto, ela aceita, ela se conforma com as migalhas de amor oferecidas de quando em quando. Por quê? Porque mulheres são educadas para serem carinhosas, acolhedoras, maternais. Para colocarem os sentimentos dos outros acima do próprio bem estar.
Com a Agome não é muito diferente. Ela também se conforma com as migalhas de amor oferecidas pelo InuYasha. Não tem coragem de lhe contar que está apaixonada, mas escolhe permanecer ao seu lado em troca de momentos breves de felicidade, ainda que o preço seja vê-lo sumir ao menor cheiro da Kikyou.
Por falar em Kikyou, esse triângulo amoroso não faz sentido. Eu sei, eu sei. O InuYasha e a Kikyou têm várias pendências. Além disso, o fato de ele poder tocá-la provavelmente ativa todas as memórias de quando se apaixonou pela primeira vez. Não me entenda mal. Não estou fazendo pouco caso desses aspectos psicológicos. Mas, gente, a Kikyou está morta; não é uma escolha difícil!
No final, foi preciso que ela morresse de novo para o InuYasha superar o passado e enxergar a Agome, que sempre esteve ali por ele. Fica mais estranho quando nos lembramos do Kouga. O InuYasha morria de ciúmes dele, não suportava vê-lo jogando charme pra cima da Agome. Insultava, brigava, rosnava e, mesmo assim, não se dava conta de estar apaixonado. Pelas chamas da Kirara, nem parece o meio-youkai que certa vez jurou usar a Joia de Quatro Almas para se tornar humano e viver com seu grande amor.
Muito sofrimento teria sido evitado se a Agome e o InuYasha apenas conversassem de forma honesta. Ela talvez não tenha conseguido por ser inexperiente e não ter nenhum adulto responsável que a orientasse a lidar com seus sentimentos conflitantes. Já ele parece ter regredido emocionalmente após passar tantas décadas pregado em uma árvore. Não quero jogar toda a culpa no InuYasha; isso seria injusto. Mas vale a pena fazer a reflexão: por que a Agome aceitou sofrer em silêncio? Ou não tão em silêncio assim, considerando que ela às vezes punia o InuYasha, gritando senta!
No fim das contas, o romance mais saudável do anime foi o que não se concretizou. Sesshoumaru e Kagura tiveram um momento belíssimo antes de ela deixar de existir. Chega a ser poético que justo o Sesshoumaru tenha sido capaz de compreendê-la em toda a extensão de sua dor. Durante vários episódios, ela transitou entre o bem e o mal, como uma versão menos desengonçada da Equipe Rocket. Lutou muito por sua liberdade, apenas para definhar em seguida, imaginando o que poderia ter sido. Talvez não seja exagero dizer que a Kagura também mendigou amor. Não o de um homem. O amor próprio. Esse amor quase impossível de as mulheres alcançarem.
Ai, Ju, é só um anime. Por que você está se dando ao trabalho de pensar nisso tudo? Porque esse anime me incomoda e, quando algo me incomoda, eu tento compreender a origem do incômodo. Lembra-se do que eu disse sobre leitura na primeira newsletter? É importante sermos críticos a respeito das obras que consumimos, pois até mesmo histórias aparentemente inocentes estão carregadas de preconceitos e visões de mundo. No caso de InuYasha, me incomoda o fato de a mendigação do amor ser retratada como fofa e romântica.
Ju, então, os casais de InuYasha são todos péssimos? Também não é por aí. Eu gosto do InuYasha. Gosto de verdade. Ele é imaturo e grosseiro, mas se esforça para melhorar. Queria muito poder assistir uma versão alternativa do anime que não gastasse tanto tempo com o triângulo amoroso sem sentido e investisse na Agome e no InuYasha como um casal que amadurece junto e se empenha em resolver os problemas do relacionamento sem ficar disparando “sua boba” e “senta” para todo lado. Teria sido gratificante. Quanto ao Mirok… Bem, esse aí não tem salvação.